sexta-feira, 28 de abril de 2017

Reflectindo sobre a justiça administrativa e o embaraço que é para Portugal


Li no Público de 7 de Outubro que «voltou a ser impossível comparar atrasos da Justiça Portuguesa com o resto da Europa», porque no ano de 2014 o Ministério da Justiça não dispunha dos dados (!).
O mesmo artigo referia que o Ministério da Justiça «não tem por práctica» apurar as estatísticas dos Tribunais Administrativos.
Ainda bem que não tem, porque se tivesse e também tivesse consciência, não dormia.
Se não há estatísticas, há experiência empírica dos tempos de tramitação dos processos nos Tribunais Administrativos e essa é trágica: é comum nesses Tribunais a tramitação na 1ª instância demorar 6, 8, 10, 12 e mais anos, para ser produzida normalmente uma sentença vergonhosa, que envergonharia qualquer Juiz dos Tribunais Cíveis ou Criminais, e isto sem que por norma haja qualquer forma de instrução ou apuramento da matéria de facto, e quando há… era melhor não haver!
Obviamente que tudo tem excepções e que há nos Tribunais Administrativos Juízes com qualidade e sabedoria; são é a excepção que confirma a triste regra.
Até há uns poucos anos atrás havia pelo menos os Tribunais Centrais, tribunais de apelação, cujos Juízes, mais velhos e experientes, corrigiam como podiam os erros e desmandos processuais da 1ª instância. Infelizmente isso está a acabar porque a triste leva de Juízes nomeados em 2004 para a «grande reforma» dos Tribunais Administrativos está agora, por artes que não entendo, 12 anos depois, a chegar aos Tribunais Centrais e a produzir acórdãos de tão má qualidade e tão indecentes como as sentenças que lavravam na 1ª instância. A barbárie chegou aos tribunais de recurso e em breve chegará ao Supremo Tribunal Administrativo.
Dizer coisas em tese geral pode parecer meramente opinativo, não há nada como dar um exemplo:
Em muito recente acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte (TCAN), de 15 de Julho de 2016, no Processo 00105/1, ficou decidido que «incumpre parcialmente o contrato de atribuição de ajudas o beneficiário que procede à troca de veículo agrícola cujo financiamento havia sido aprovado por um outro, não previsto na candidatura assim cometendo uma infração contratual, legalmente cominada com a alteração unilateral do contrato e a determinação da reposição do montante correspondente
Do que é que se trata? Um pobre agricultor do Norte do País candidatou-se a uma ajuda europeia a um projecto de investimento que passava pela limpeza e melhoramento de um olival e a aquisição de um tractor.
Recebeu uma ajuda ao investimento de cerca de 20.000,00 €, dos quais despendeu 18.455,52 € na aquisição de um tractor.
Alegou o prestador da ajuda, o IFAP, «que o projeto de investimento estava em situação irregular, uma vez que o trator existente na exploração não correspondia ao trator aprovado», tendo em consequência procedido a uma rescisão parcial do contrato de ajudas, exigindo a reposição do valor da ajuda à compra do tractor – 9.227 € - acrescidos de mais de 2000 euros de juros moratórios.
O agricultor impugnou este acto perante o Tribunal Administrativo de Mirandela alegando que esse tractor teve de ser substituído por outro mais potente, por o primeiro não ser capaz de dar conta do recado, que adquiriu esse tractor mais potente e que com ele concluiu o projecto de investimento, tendo aplicado em tal projecto a totalidade das ajudas recebidas.
Para o Tribunal Administrativo de Mirandela os factos contaram pouco: nem curou de saber se o tractor de substituição era mais potente – e caro – que o tractor objecto da ajuda, nem de saber se o projecto tinha sido devidamente executado e concluído. Ficou-se pela conclusão formal, e absurda, de que o tractor subsidiado não constava da exploração agrícola, concluindo ter ocorrido «incumprimento do contrato».
Debalde recorreu o agricultor para o TCAN: este excelso tribunal recusou-se a proceder à reanálise da matéria de facto, com argumentos especiosos que só o deslustram; e sobre a matéria de direito concluiu que tendo ocorrido «incumprimento do contrato» ao IFAP não restava mais do que rescindir parcialmente o contrato, sendo até uma obrigação vinculada à qual não poderia escapar mesmo que quisesse.
Acrescenta, misteriosamente, que «a atuação administrativa aqui questionada é uma atuação maioritariamente vinculada (desde logo, pelo direito europeu)…». Lendo na íntegra o acórdão não se vê a que disposição do direito europeu se refere o acórdão.
Em suma, o Tribunal Administrativo de recurso denega ao pobre agricultor qualquer respaldo da Justiça, numa situação em que os factos são que a ajuda recebida foi integralmente gasta no projecto aprovado, que foi executado e concluído e que o referido tractor foi substituído por outro mais potente e mais caro e mais capaz para o serviço a realizar.
Não sei, porque o Acórdão não o refere, quando começou este caso, mas deverá ter começado em 2009, data do acto administrativo impugnado. Decorreram sete anos para obter esta vergonha.
Aos juristas que me lerem peço que reflictam sobre a fundamentação jurídica do Acórdão em questão e concluam se «aquilo» é digno de um Tribunal Superior.
É por estas e por outras que cada vez mais sou adepto de por fim à triste experiência dos tribunais administrativos, cuja legislação e regulamentação supervisionei enquanto Secretário de Estado da Justiça.

Para ter isto, mais vale a pena só ter Tribunais Cíveis e Supremo Tribunal de Justiça. Já chega!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A Justiça Administrativa em Revista

“DO ESPÍRITO DAS LEIS,OU DA RELAÇÃO QUE AS LEIS DEVEM TER COM A CONSTITUIÇÃO DE CADA GOVERNO, COM OS COSTUMES, O CLIMA, A RELIGIÃO, O COMÉRCIO, ETC. A QUE O AUTOR
ACRESCENTOU PESQUISAS RECENTES SOBRE AS LEIS ROMANAS NO QUE TOCA ÀS SUCESSÕES, SOBRE AS LEIS FRANCESAS E SOBRE AS LEIS FEUDAIS.

Prolem sine matre creatam. OVÍDIO

Advertência do Autor
Para a inteligência dos quatro primeiros livros desta obra, deve-se observar que o que chamo de virtude na república é o amor à pátria, ou seja, o amor à igualdade. Não é uma virtude moral, nem uma virtude cristã, é a virtude política; e este é o motor que move o governo republicano, como a honra é o motor que move a monarquia. Logo, chamei de virtude política o amor à pátria e à igualdade. Tive ideias novas; logo, foi preciso encontrar palavras novas, ou dar às antigas novas acepções. Aqueles que não entenderam isto fizeram-me dizer coisas absurdas, que seriam revoltantes em todos os países do mundo porque em todos os países do mundo se quer a moral.

2° É preciso prestar atenção à diferença muito grande que existe entre dizer que uma certa qualidade, modificação da alma, ou virtude, não é o motor que faz agir um governo e dizer que ela não se encontra neste governo. Se eu dissesse: tal roda, tal pino não são o motor deste relógio, se concluiria que eles não estão no relógio? Da mesma forma, as virtudes morais e cristãs estão tanto menos excluídas da monarquia quanto a própria virtude política não o está. Em uma palavra, a honra está na república, ainda que a virtude política seja seu motor; a virtude política está na monarquia, ainda que a honra seja seu motor.
Enfim, o homem de bem do qual se trata no livro III, capítulo V não é o homem de bem cristão, e sim o homem de bem político, que possui a virtude política da qual falei. É o homem que ama as leis de seu país e age por amor às leis de seu país. Dei uma nova luz a todas estas coisas nesta edição, fixando ainda mais as ideias: e, na maior parte dos lugares onde usara a palavra virtude, coloquei virtude política.

MONTESQUIEU

Prole de geração espontânea, o contencioso administrativo floresceu no nosso seio sem preparação prévia nem doutrina assente.
O compasso e a bússola que nos deviam orientar nesta terra incógnita, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, não são instrumentos de fiar, pela incerteza, variação, entendimentos diferentes, flutuações de raciocínio, ao sabor do momento e da sapiência de cada Juiz.
Um corpus jurisprudencial que se devia sólido, constante, feito de precedentes, seguindo um fio visível de raciocínio jurídico, constata-se ser apenas uma via sinuosa e sem sentido aparente.
Coisas tão simples como a tutela jurisdicional efectiva ou a igualdade de armas, soçobram perante a jurisprudência (se isso se lhe pode chamar) das primeiras instâncias, a morosidade silenciosa e triste dos Tribunais Centrais e a insensibilidade do STA.
Nuns casos por visível falta de formação humana, ou jurídica ou para a função, noutros por pura preguiça, desentendimento ou alheamento, os tribunais administrativos não correspondem, nem de perto, às altas expectativas postas neles pela reforma de 2004.
Não é por falta de meios humanos ou logísticos, nalguns casos, como o da presença do Ministério Público, até em excesso ao ponto da nocividade, que o sistema concebido para funcionar não funciona.
Qualquer praticante da arte se apercebe destas insuficiências no dia-a-dia. Muitos de nós temos soluções para muitos dos problemas que nos afligem, sugestões de melhoria ou alteração radical, mas não temos onde as exprimir.
Há também raios de sol, excelentes sentenças fundamentadas em processos limpos, de trajecto seguro, que são exemplos do que deve ser.
Proponho um foro de intercâmbio, mais de experiências que de ideias, que não se pretende o motor intelectual de nenhuma alteração, mas também não o exclui, em que os práticos e os teóricos do contencioso administrativo, sem pretensões de teorizar possam sugerir e comentar.
Caberão neste blog comentários de jurisprudência, peças teóricas, meras sugestões, apontamentos de vida dos tribunais administrativos, na medida em que cada um possa contribuir, no tempo em que cada um o possa fazer, sem obrigações nem prazos.
À medida que avançarmos definiremos a nossa própria «jurisprudência», ou seja o nosso modo de operar.

Inspiro-me nesta iniciativa em Mouzinho da Silveira, o homem das grandes reformas administrativas.